Sinopse: Desgraça é muito mais do que um relato social: é um relato de sobrevivência pessoal numa sociedade decadente. Passado na África do Sul pós-apartheid, este romance sincero e despudorado centra-se em David Lurie, professor universitário na Cidade do Cabo, de meia-idade, divorciado, que divide o seu tempo entre o desânimo das aulas e as satisfações momentâneas que encontra numa prostituta. Quando esta o deixa de atender, David desvia as atenções para uma jovem aluna, começando uma aventura sexual que, quando tornada pública, o leva ao despedimento e à humilhação.
Opinião:
"Está bem, eu vou. Mas só se não tiver de me tornar numa pessoa melhor. Não estou preparado para me regenerar. Quero continuar a ser eu mesmo."
Galardoado com o prémio Nobel da Literatura em 2003, J.M. Coetzee é um Sul-africano naturalizado australiano. Este é o primeiro romance que li da sua autoria, e já acrescentei à lista, para ler, À Espera dos Bárbaros.
Interessa-me muito ler sobre África e as suas complexidades, e durante a leitura veio-me à ideia a trilogia das irmãs Keating sobre o Quénia. Mas o Quénia das irmãs Keating é um Quénia pós-domínio britânico, e a África do Sul de Coetzee é dos anos 90. Dói bastante o facto de ser tão contemporânea, mesmo porque há um senso doloroso de potencial desperdiçado.
A nossa personagem principal, o Professor David Lurie, é produto dessa complexidade cultural. Começa o romance com uma posição relativamente privilegiada, numa Universidade, e é destituído do cargo devido aos impulsos incontroláveis da sua sexualidade decadente. Como homem de meia-idade, horroriza-o a falência da masculinidade, do intelecto, do vigor dos membros para realizar tarefas manuais. Junto da filha, uma mulher corajosa que nunca cheguei a compreender por completo, terá oportunidade de reflectir um pouco sobre si mesmo, as suas acções, a sua personalidade e o que, em si e na África profunda, lhe parece imutável.
O David Lurie de Coetzee não é heróico, nem um idealista, nem se propõe a mudar coisa alguma. É apenas um homem já não muito novo, já não muito forte, perante uma sociedade estratificada e dura que não perdoa um deslize, mas que, ainda assim, é prolífera em favoritismos, em tirania subtil e em crueldade humana.
Terminei o romance com um travo a angústia e a frustração. África é sempre mágica, e também é sempre implacável. Este romance mostra-o com grande competência.
Opinião: "E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não sei; acaso sou eu guardador do meu irmão?" (Génesis 4:9) A Leste do Paraíso é um romance publicado por John Steinbeck em 1958, dez anos antes da sua morte e quatro anos antes de lhe ser concedido o Nobel. Li-o convencida de que a maturidade do escritor, em termos de imaginação, de domínio da língua e de compreensão do animal humano estavam no seu auge. Esta percepção levou-me a considerar que esta teria sido a última obra em vida de Steinbeck, mas estava errada. Assim sendo, o apogeu do autor não ocorreu necessariamente quando estava em posse de maior compreensão do mundo ao redor, mas num instante de clarividência em que decidiu debruçar-se sobre a sua família e os seus antepassados, e sobre a vivência dos habitantes do Vale do Salinas, na Califórnia. "Então Caim deixou a presença do Senhor, e viveu na terra de Nod, a Leste do Paraíso." (Génesis 4:9) Emprestando a esta obra um cunho vincadamente bíblico, Steinbeck projetou nas família Hamilton e Trask trechos da sua própria ancestralidade, personagens da sua vivência e episódios da sua infância e juventude. A família Hamilton é povoada de personagens inesquecíveis, bem como o núcleo Trask. O mais admirável são, no entanto, as relações. A dinâmica das relações marido e mulher, pai e filhos, irmãos, criados e amos. Várias personagens são francamente inesquecíveis – Adam Trask (Adão), Lee (o chinês sábio que nos enternece desde o início), Samuel Hamilton, o inventor louco e ternurento, a maquiavélica Cathy e os jovens Cal (Caim?) e Aaron (Abel?). Senti-me envolvida nos diálogos e nas decisões das personagens, torci por elas e sentei-me com elas sob as estrelas na noite californiana, a discutir vocábulos em hebraico, mitologia grega e literatura internacional. Steinbeck polvilhou este romance colossal de humanidade, de dúvidas existenciais. Importa-lhe menos a sociedade, a injustiça, e mais o indivíduo e os seus dilemas interiores. Neste romance debatem-se o bem e o mal, ao longo de três gerações da família Trask. O bem e o mal, anjos e demónios. Sempre à luz de algo intrinsecamente humano e fulcral: o livre-arbítrio. Sublime, como só Steinbeck. "- Sabes onde está o teu irmão? (...)- Não faço a menor ideia. Não me pagam para tomar conta dele." (A Leste do Paraíso) Sinopse: Com acento bíblico, o grande autor de As Vinhas da Ira define o universo de A Leste do Paraíso através das seguintes inspiradas palavras: “O assunto é o mesmo que cada homem tem utilizado como tema: a existência, o equilibro, a batalha e a vitória, na eterna guerra entre a sabedoria e a ignorância, a luz e a treva, o bem e o mal.” A Leste do Paraíso, vasto fresco levantado a partir do relato da vida de várias gerações de duas famílias norte-americanas, os Trask e os Hamilton, num período crucial da história dos Estados Unidos (1860, Guerra da Secessão – 1920, anos imediatos à Primeira Grande Guerra), proporcionou ao malogrado James Dean talvez o mais importante papel da sua carreira. Classificação: 5/5*****
Sinopse:Mãe de duas crianças pequenas, Myriam decide retomar a actividade profissional num escritório de advogados, apesar das reticências do marido. Depois de um minucioso processo de selecção de uma ama, o casal escolhe Louise. A ama rapidamente conquista o coração dos pequenos Adam e Mila e a admiração dos pais, tornando-se uma figura imprescindível na casa da jovem família.
O que Myriam e Paul não suspeitam - ou não querem ver - é que a sua pequena família é o único vínculo de Louise à normalidade. Pouco a pouco, o afecto e a atenção vão dando lugar a uma interdependência sufocante, com o cerco a apertar a cada dia, até desembocar num drama irremediável.
Com um olhar incisivo sobre esta pequena família, Leila Slimani aponta o foco para um palco maior: a sociedade moderna, com as suas concepções de amor, educação e família, das relações de poder e dos preconceitos de classe. Com uma escrita cirúrgica e tensa, eivada de um lirismo enigmático, o mistério instala-se desde a primeira página, um mistério que é tanto sobre as razões do drama como o das profundezas insondáveis da alma humana.
PRÉMIO GONCOURT 2016, o mais importante prémio literário francês.
Opinião:Chanson Douce, vencedor do prémio Goncourt em 2016, é o segundo romance da franco-marroquina Leïla Slimani, e remexe nos lugares pútridos da vida moderna, quotidiana, inquestionável.
Conforma a sinopse adianta, esta é a história de como a babá perfeita perde a sanidade, o senso de pertença, até se abandonar ao acto abominável de assassinar as duas crianças que tem a seu cargo. Este enredo é uma adaptação livre do caso de Yoselyn Ortega, uma ama que, em 2012, matou as duas crianças a seu cuidado.
A premissa que o livro defende é o que levou uma mulher submissa, servil inclusive, dócil e responsável, maternal e prestável, confiável, a cometer um crime tão hediondo?, ou, noutras palavras, o que leva uma pessoa a transformar-se num monstro?
Eu diria que o livro é pertinente em muitas frentes, sendo a principal a evidente questão das desigualdades sociais, que cavam fossos de entendimento entre as pessoas. Esses fossos podem atenuar-se com a familiaridade de um emprego/patrão, ou podem aprofundar-se quando as diferenças são obrigadas a conviver tão de perto.
Na Paris dos Massés, Myriam (franco-marroquina) e Paul, enquanto uns se focam na ascensão social e económica, no prestígio e no cumprimento de sonhos materiais, outros debatem-se com polibans bolorentos, comem os restos dos patrões e, por muito que oiçam dizer que são parte da família, são sempre insubordinados, e são apanhados num limbo estranho, no qual pairam entre serem estranhos ao casal, mas familiares às crianças e ao ambiente doméstico.
Louise, a personagem principal, é uma loirinha bonita e frágil, muito limpa, na casa dos 40 anos. Uma vez que não encontrei menções à sua nacionalidade, assumi que é francesa. Myriam é muçulmana, magrebina. Aqui todas as diferenças contam, porque Louise, com toda a competência no seu trabalho, todas as referências que levam à sua contratação, não construiu nada, não tem nada. O seu carácter submisso levou a que o próprio marido tivesse dirigido a vida do casal enquanto era vivo, deixando-a enterrada em dívidas. Vive em situação precária, de tal modo que o apartamento dos Massés, a sua rotina e sobretudo as suas crianças transformam-se na sua única motivação, na sua única ligação ao mundo real, digno e limpo, luminoso, arejado.
Louise está destruída psicologicamente. Sozinha, confusa, receosa do futuro, desligada de todas as responsabilidades fora do apartamento, a vida de Louise torna-se suspensa da existência dos Massés, e está disposta a tudo para evitar um afastamento.
Não atribuo 5* a este livro com o tom de uma crónica porque senti que, perto do fim, faltaram ali alguns alicerces psicológicos. Louise está pressionada, mas estará no limite? Como se passa da mulher que adora os seus meninos, endividada e no caminho da paranóia, para a mulher que se vale de uma faca de cozinha para acabar com a vida dos seus mais-que-tudo?
Expõe a hipocrisia da nossa sociedade ocidental, supostamente igualitária, inclusiva, sem preconceitos. Vale muito a pena.
Sinopse: Cândido ou o Otimismo é um conto filosófico de Voltaire, publicado pela primeira vez em Genebra em janeiro de 1759. A par de Zadig e Micromégas, é um dos escritos mais famosos de Voltaire, tendo sido reeditado vinte vezes em vida do autor.
O livro é pretensamente traduzido de uma obra alemã do Dr. Ralph, pseudónimo utilizado por Voltaire para evitar a censura.
No essencial, trata-se de uma crítica às teses do filósofo alemão Leibniz, convencido da excelência da criação divina, através dos princípios da «razão suficiente» e da «harmonia preestabelecida». Voltaire faz essa crítica através das aventuras de Cândido, um jovem alemão possuidor de um espírito simples e reto, nascido como filho ilegítimo no seio da nobreza e adotado pelo barão de Thunder-ten-Tronckh. É no castelo deste que vai ser educado por Pangloss, partidário, como Leibniz, de que «tudo está o melhor possível».
Depressa se torna evidente para os leitores o sarcasmo com que Voltaire trata não apenas as teses de Leibniz mas também o conservadorismo social e a nobreza arrogante.
Opinião:
"(...) Encontraram um negro caído no chão, não tendo mais do que metade do vestuário, isto é, umas ceroulas de tecido azul. Faltava àquele pobre homem a perna esquerda e a mão direita.(...)
- (...) é o costume - disse o negro. - Por vestimenta dão-nos umas ceroulas duas vezes por ano. Quando trabalhamos nos engenhos de açúcar e a mó nos apanha o dedo, cortam-nos a mão; quando tentamos fugir, cortam-nos a perna. Incorri nestas duas situações. É por esse preço que os senhores comem açúcar na Europa."
Candide ou l'optimisme, publicado em 1759 por Monsieur Le Dr. Ralph, que afinal era Voltaire, que afinal é François-Marie Arouet, foi a maior surpresa literária da minha vida. Jamais tive ambições de ler "Voltaire", e até me senti muito vaidosa nestes dois (curtos) dias em que me passeei nos transportes públicos com esta bomba literária nas mãos. Comprei o livro porque o herói desta sátira, o ingénuo Cândido, desembarca em Lisboa e sofre um terramoto, e ando embrenhada nesse estudo dos terramotos em Lisboa. No fim das contas, o livro valeu por cada parágrafo, e o terramoto ou a estadia em Lisboa são uma pequena vírgula neste mar de reflexões.
É importante deixar claro que quando decidi lê-lo foi sobretudo porque é pequeno - em conteúdo tem 128 páginas -, e porque é um livrinho bonito, outra primorosa edição da Relógio d'Água, que nos últimos tempos tem-se tornado a minha editora de eleição. Assim sendo, a expectativa era zero, sobretudo tendo em conta que deixei as minhas últimas leituras penduradas - A Montanha Mágica, O Homem do Castelo Alto e Quando Lisboa Tremeu.
Logo nas primeiras páginas, fui catapultada para a Vestefália e para o tom irónico, bem-humorado, o ritmo rápido, as situações inusitadas, as reações cândidas do nosso Cândido... Em breve surgem as hipocrisias, contradições e crueldades da sociedade do século XVIII, e nesse sentido é evidente que Voltaire fosse persona non grata em muitos círculos, como "libertador do espírito" que era. Voltaire, expondo Cândido às mais difíceis situações, parte da premissa defendida por Leibniz, seu adversário intelectual, de que no mundo tudo está bem, e tudo corre pelo melhor, e tudo é o melhor que pode ser (julgo que esta filosofia só convém ao poder, aristocrático e clerical, porque afasta o povo da contestação - e da consequente revolução, que estava ali ao virar da esquina). Este princípio, defendido pelo seu mestre Pangloss, por quem Cândido tem a maior admiração, é posto à prova nas viagens acidentadas do nosso herói, no decorrer das quais vai conhecendo todo o tipo de pessoas e se vai inteirando de que no mundo nada está bem, tudo poderia ser melhor.
Voltaire arriscou o pescoço ao expor a devassidão e a ganância dos clérigos, tão ou menos honestos do que os ladrões comuns, que mantém amantes e se batem por dinheiro e prestígio. Expôs a Inquisição, "na sua infinita crueldade", ridicularizou o costume de se fazerem autos-de-fé contra desgraças, ignorando a evidência de ser o auto-de-fé em si uma desgraça. As mulheres são objectificadas, violadas, cobiçadas e mantidas por homens desonestos, biltres sem honra nem moral. Em todas as realidades que percorre, a religião infecta o povo, escraviza-o, submete-o aos seus interesses e às suas lavagens cerebrais. O mundo, da Europa à América do Sul, está pejado de religiosos. Há jacobinos, oratorianos, jesuítas, franciscanos, e outros tantos que ele refere e que não chegaram ao nosso tempo, há também protestantes e muçulmanos, e todos se acham donos da verdade, e massacram os diferentes em nome do seu Deus.
Voltaire critica a escravatura e a opulência, o ócio e a malvadez, a presunção dos aristocratas e a crueldade dos costumes. A vida humana nada valia para os governos do século XVIII, que esquartejavam, queimavam, enforcavam, mutilavam, violavam e guilhotinavam o povo para que uma pequena elite mantivesse os seus privilégios.
Neste volume atreveu-se a demonstrar, por a + b, que somos todos iguais e que qualquer governo pode cair a qualquer instante. (Esta ideia tão simples abalava os alicerces do Absolutismo Régio, que estipulava que o rei era intocável e omnipotente, e que Deus o elegia para soberano de um povo. Estas ideias de que os reis são facilmente depostos despoletavam a cólera dos monarcas, e terão granjeado a Voltaire uma horda de inimigos.) Diria que o povo é quem mais ordena e, como pilar do Estado, chegava a hora de tomar as rédeas do seu destino, e de se libertar da tirania dos governos.