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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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#207 STEINBECK, John, A Um Deus Desconhecido


Sinopse: As antigas crenças pagãs, as grandes epopeias gregas e os relatos da Bíblia servem de base a este romance extraordinário, que Steinbeck demorou cinco longos anos a escrever. Ao dar cumprimento àquele que sempre fora um dos grandes desejos do pai, criar uma quinta próspera na Califórnia, Joseph Wayne acaba por vir a acreditar que uma das mais belas árvores dessa quinta incorporou o espírito do seu progenitor. Os irmãos e respectivas famílias, que foram viver com ele, beneficiam dos êxitos e da prosperidade de Joseph, e a quinta vai-se de facto desenvolvendo – até um dos irmãos, assustado pelas suas crenças pagãs, decidir cortar a árvore, o que faz com que a doença e a fome se abatam de súbito sobre todos eles. A um Deus Desconhecido (1933) é um romance quase místico, que tem por tema central o modo como os homens tentam controlar as forças da natureza, e ao mesmo tempo compreender a sua relação com Deus e com o inconsciente. 

Opinião: "A Um Deus Desconhecido" é a minha estreia com Steinbeck. Tinha uma edição antiga de As Vinhas da Ira, mas lembro-me de começar a ler e de ficar perdida em tanta descrição. A descrição é, precisamente, aquilo que me prendeu de modo tão eficaz a este livro. O título é delicioso, e o livro dança em redor da sua simbologia com uma graciosidade admirável. 

O enredo é relativamente simples: estão a dar terras na costa Este e Joseph Wayne, que sempre sonhou em possuir algo de seu, despede-se do pai, quase um moribundo, e parte. Contudo o livro está prenhe de emotividade, de intuição e de superstição, e creio que a personagem principal não se perdoa por ter partido de modo tão impaciente, quando o seu modelo, o pai, lhe garante que pouco falta para morrer, e que então poderia acompanhá-lo em espírito até ao seu novo lar. 
O novo território é quase selvagem, e Steinbeck descreve-o de modo a que nos chega aos sentidos o perfume dos loureiros, da terra húmida, do pêlo das vacas e dos cavalos, enquanto a audição acompanha os cascos das bestas em trote, os cursos de água em confronto com as pedras, o uivo dos coiotes, a porta do celeiro que range. Em termos de cenário, o livro é a quatro dimensões.

Surpreendeu-me também a profunda humanidade em cada reacção destas pessoas, porque, em breve, ao dar notícias da sua prosperidade aos irmãos, Burton e a esposa, Jennie, e Thomas e a respectiva, Rama, juntam-se-lhes com a sua horda de filhos. Joseph é o que nos oferece mais camadas, é uma mescla de aceitação, entusiasmo, desalento, espiritualidade e depois desalento. Tudo de modo homogéneo, apesar de q sua vida estar ligada à da sua terra, aceita com facilidade as crenças dos outros e entende-as. Ao contrário dos que o rodeiam, que se melindram com os diferentes. 
Joseph ama e respeita a terra, comprometendo-se a protegê-la de qualquer ameaça - que, para o efeito, são os anos de seca cíclicos, narrados com dissabor pelos homens da população local, Nuestra Señora. Andam por ali índios, portugueses e mexicanos. Os primeiros têm crenças ligadas aos ritos da terra: sacrifícios, danças e oferendas, clareiras sagradas onde grandes rochedos cobertos de musgo convidam as grávidas à reflexão. Os segundos e os terceiros são profundamente católicos, e devem ao Padre Ângelo a sua salvação espiritual. O clã Wayne é protestante, pelo que Burton, o mais religioso dos irmãos, se sente desenraizado naquela terra, que desde o início lhe parece herege e devota ao demónio. Por outro lado, Thomas, mais rude, tem uma relação única com os animais. Respeita-os, domestica-os, inflinge-lhes a dor e a morte como se a sua alma fosse uma só com a deles. Não é tão reflexivo quanto Joseph, mas é igualmente introspectivo e de valores profundos. É o irmão cuja religiosidade é conservadora, mas a mente alcança um pouco além das escrituras. 

E depois Joseph, que, no ímpeto de se ver feliz e perante uma tal promessa de prosperidade, olha em redor e vê os animais a reproduzirem-se, a natureza em êxtase, o sol e as chuvas em harmonia, e convence-se que tanta bonança advém da bênção do seu pai, cujo espírito estaria presente nos ramos de um velho carvalho. Junto do carvalho busca conselho, regressando sempre que necessita de partilhar algo que, aos outros, poderia soar ridículo. Entende-se assim como a espiritualidade é algo de íntimo, e que se a sua vantagem é a de nos fazer sentir bem com o mundo, então os seus ritos não devem ser impostos a quem nos rodeia. Entende-se também quão destabilizador é, que alguém nos rache as crenças ao meio, só porque lhe parece desenxabidas. Joseph, de bem consigo mesmo, acaba inclusive por permitir que se celebre uma festa em honra da fertilidade do local, para a qual convida o padre Ângelo, que celebra missa e traz as imagens de Nossa Senhora e de Cristo para o altar improvisado. Isto transtorna o seu irmão Burton, que profetiza que toda aquela idolatria e paganismo acabarão por levá-los à desgraça. Na minha óptica, Burton tem receio. Crê num Deus vingativo e colérico, pouco tolerante, e sente que o irmão está a expô-los a todos a um castigo imerecido.

A morte de um humano é um processo longo e demorado. Matamos uma vaca, e a mesma está morta assim que a carne seja comida, mas a vida de um homem morre como uma comoção numa poça tranquila, em pequenas ondas, expandindo-se e regressando à imobilidade. 

A beleza da narrativa consiste nas descrições pueris da natureza, e de como a mesma ora é simples, ora é incompreensível. Mas reside, sobretudo, no modo como o universo significa coisas tão diferentes para cada personagem, e cada um é devoto àquilo que o tranquiliza, sendo que Joseph precisa da árvore para se sentir seguro, Thomas dos animais e Burton das escrituras e dos acampamentos religiosos. Há ainda quem precisa de se cobrir de peles de animais para ir festejar as chuvas, e se rebole na lama para o mesmo efeito. E depois há quem sinta que deve sacrificar a cada pôr do sol uma criatura diferente, para que na sua terra se multipliquem as sementes e a humidade a mantenha fértil. Deus é algo diferente para cada um deles, e a incompreensão por parte dos outros lança sombras sobre a existência de cada um. 

A ideia geral - e que corroboro - é que Deus é uma entidade pessoal para cada um de nós, e podemos encontrá-lo naquilo que nos traz conforto e paz, sem que exista uma explicação lógica. Um belo tratado sobre tolerância religiosa, numa altura em que o diferente voltou a significar ameaça. Se formos capazes de reconhecer a intimidade premente entre cada um e o universo, talvez o bem-estar espiritual chegue a todos.
Um elogio ainda ao evidente carácter intemporal do livro, escrito em 1933 e tão contemporâneo, bem como à feminilidade que brota desta natureza em esplendor, e à ternura e entendimento entre os homens de Steinbeck e a mulher amada. 
Mal posso esperar por voltar a ler o autor.

Classificação: 5/5*****