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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

#104 SHREVE, Anita, Testemunho

Sinopse: Uma pequena cassete de vídeo chega às mãos dodirector da conceituada Academia de Avery - uma catástrofe de proporções queninguém será capaz de prever. Mais chocante do que os actos sexuais nelagravados é o facto de terem sido protagonizados por três rapazes com idadescompreendidas entre os dezoito e os dezanove anos e uma rapariga de apenascatorze. Qual caixa de Pandora, a gravação desencadeia uma tempestade devergonha e recriminação que se abate sobre a pequena comunidade, revelando umaintrincada teia de segredos e mentiras. Homens e mulheres, adolescentes eadultos envolvidos no escândalo tentam decifrar os acontecimentos daquela noitee os seus efeitos. Mike Bordwin, o director, quer a todo o custo conter oescândalo e salvaguardar a reputação da escola; Silas Quinney, um popularaluno, sofre as consequências dos seus actos, enquanto Anna, a mãe, enfrenta assuas próprias faltas; e Sienna, uma jovem enigmática e perturbada, não olha ameios para esconder o seu passado. As imagens reveladas suscitam mais perguntasdo que respostas. Como foi possível tal comportamento no seio de um ambientetão selecto? Quem é culpado e quem é inocente? Podem as consequências de umacto imprudente ser travadas ou o futuro de todos os envolvidos seráirremediavelmente destruído? À medida que o coro de vozes se levanta, revela-sea surpreendente verdade sobre os acontecimentos daquela noite, e as vidas detodos os envolvidos serão transformadas para sempre.

Opinião: Um dos meus livros favoritos, lido em2004 salvo erro, foi escrito pela mão de Anita Shreve. “A Praia do Destino”traduz uma visão única da condição humana e derruba barreiras quanto a questõesregidas pela moral do senso comum. Um caso entre uma jovem de quinze anos e ummédico de quarenta e um, ainda por cima casado, ainda por cima em 1899, é umdesses casos de moral indiscutível. Mas a autora conseguiu promover um debate afazer da humanidade e das circunstâncias, e foi isso que me comoveu e me rendeunessa leitura. Um vídeo onde uma rapariga de catorze anos (por Deus, a minhairmã tem treze!), sexualmente experiente e madura, tem relações com trêsrapazes de dezoito e dezanove anos cai também na condenação moral do sensocomum.
Uma cassete chega à posse do director dareputada Academia de Avery, no Vermont, onde a natureza dos actos registadosconstitui um crime. Acusados de abuso sexual, os três rapazes enfrentam ajustiça, os pais e a própria consciência.
Trouxe este livro para Itália com esperança defazer rendê-lo mas, apesar de ter dormido apenas três horas esta noite, o apelodurante o voo suplantou o cansaço e li as últimas cem páginas de enfiada. Aabordagem da autora é única; cada um dos muitosenvolvidos vai-se pronunciando a respeito do caso, e com estes recortesconstitui um recorte alargado das consequências daquele “deslize” para toda agente.
Cada personagem tem uma voz única, de iníciopode parecer que são muitas personagens, mas os capítulos são curtos e fui apontandoos nomes dos envolvidos, dos pais, do director, do director que veiosubstituí-lo, da empregada do refeitório, do jornalista, da enfermeira, doxerife da cidade, etc. Cada relato é multidimensional, proferido em tompessoal, e ajuda a compor os acontecimentos da noite de 21 de Janeiro em Avery,e também as consequências que daí advieram e os motivos que levaram a essedesfecho.
Afinal, falamos de dois casamentos afundados, umdesgastado, uma morte, várias demissões, dois jovens com futuros promissoresexpulsos, um caso amoroso trágico e uma série de acasos inofensivos que,conjugados, culminam numa catástrofe. É precisamente isto que aprecio naShreve; como o aparente “pouco” pesa tanto consoante as circunstâncias. Comesta aurora há sempre um cair das máscaras, um cavar mais fundo, um silenciarde coisas importantes, um deduzir, um calcular, um falhar. Adorei o modo como aautora conduziu o livro e as conclusões que dele tiramos; não há inocentes nemculpados, são todos vítimas das circunstâncias e, quase no fim, quis chorar.Ela faz-me sempre isto; chorei a ler “A Praia do Destino”, chorei a ler “A Casana Praia”, chorei próximo do fim do “Casamento em Dezembro”, e chorariacertamente neste não fosse o casal britânico a meu lado no avião.


Não consigo despregar-me da certeza de que estouperante um/a dos/as melhores escritores/as contemporâneos/as da actualidade.Não é um livro para estômagos fracos, porque a escritora não força o drama –nem floreia demasiado – mas é crua. E essa crueza revela o que de mais sujo einquieto reside em cada um de nós. Perturbador, pertinente; um triunfo porentre a obra da autora, que assim se supera de novo.

#103 OLIVEIRA, Carlos de, Uma Abelha na Chuva

Sinopse: Uma Abelha na Chuva conta-nos as peripécias de Álvaro Rodrigues Silvestre, sujeito às “instigações” de sua esposa, D. Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho Silvestre. O livro começa com uma confissão de Álvaro e com a sua vontade de a tornar pública na primeira página da Comarca — uma redenção consigo próprio. 
Esta história leva-nos à aldeia de Montouro num Outono chuvoso, onde conhecemos as personagens que rodeiam este casal e constituem a aldeia e pelos quais ficamos a conhecer o Portugal provinciano de meados do século XX.Como afirma o autor, “Por onde a solidão a fazia resvalar. E o quarto tão frio. Talvez os ventos, os granizos do norte, as grandes chuvas. Talvez D. Violante. Mas sobretudo a velha casa de Alva, quando a miséria não chegara ainda e, atrás dela, os Silvestres. Agora é o marido labrego e doentio, as bebedeiras, o desencanto, isto. Quer melhores nortadas, D. Violante?”.O escritor ironiza a sabedoria popular, o largo da aldeia quando acolhe um ajuntamento popular, ancestral, onde tudo se discute, onde tudo se decide num julgamento popular e, tantas vezes, tacanho. E a morte, que persegue Álvaro numa bebedeira de brandy, a morte que tolhe Jacinto e Clara, à chuva, persiste em vingar neste livro.

Opinião: Uma Abelha na Chuva, publicado em 1953, é o retrato físico de uma mulher bonita, robusta, casada por dever com um homem que a ama, e que ela despreza. Um homem fraco, bondoso, bonacheirão. É um ensaio poderoso, que consiste na submersão por inteiro num mundo rural claustrofóbico, e também no pensamento de alguns estratos sociais aqui bem representados. 

Este livro veio ter comigo através do programa Grandes Livros da RTP 2, podem aceder-lhe aqui. Enquanto o esmiuçavam, passavam imagens a preto e branco do filme homónimo de 1971, e a prestação da Laura Soveral como D. Maria dos Prazeres captou-me a atenção. Uma mulher de aspecto tão firme, e, no entanto, quebrada por dentro. Esvaziada de doçura, de calor, de suavidade. O cabelo perfeitamente arranjado, e ainda assim um torvelinho na alma, evidente sob a superfície serena. Reconheci o tipo de força sustido por aquele rosto quase passivo que, de olhar baço, se insinuava no ecrã, arrebatando-o, cena após cena. As páginas deste romance, como um mergulho no quotidiano destas pessoas e das suas relações estéreis, expõem o casamento disfuncional de Álvaro Silvestre, pequeno proprietário rural, dono de uma mercearia, quem sabe outrora lavrador, e de D. Maria dos Prazeres, oriunda de uma família nobre em declínio. Apegada aos objectos que um dia coloriram o estatuto da família, esta personagem é de uma nitidez intimidante, mas, nem por isso está melhor composta do que as restantes. Todos os rostos ali criados por Carlos de Oliveira são dotados de uma admirável multidimensionalidade: é palpável uma certa hipocrisia no cura, uma ambição desmesurada no proletariado, uma asfixia da nobreza e a decadência moral de uma burguesia de vícios e fraquezas.

D. Maria dos Prazeres é apegada à tradição, ao passado, e é também uma vítima de ambos. Foi conduzida ao altar por um pai à beira da falência, e viu-se condenada a uma vida de infelicidade ao lado de um homem que considera fraco. É ela quem dá ordens e é obedecida, nos seus domínios, é ela que se vale do padre para espiar o marido. Contudo, nem tudo está dentro dos limites rígidos do seu controlo; não manda no próprio coração nem numa coisa que tem vida própria e que pulsa a cada vez que põe os olhos no cocheiro da casa; o desejo. Deseja o cocheiro rude, risonho, despreocupado, um pouco tosco que a segue para onde ela o mandar. Talvez porque ele seja uma antítese gritante do seu marido patético. Mas o cocheiro personifica um devaneio fora do seu alcance, e ela não dá um passo para inverter essa situação, quiçá porque essa atracção a vexe, ou porque, mal-grado o chamamento da carne, o considere indigno da sua pessoa. Enquanto isso o marido, também miserável, bebe. A acção decorre num espaço circunspecto, em que o mundo rural vem descrito de forma sublime – cheira-se, toca-se, sente-se, ouve-se. 

Tudo se precipita quando Álvaro ouve o cocheiro mencionar os indesejados olhares cobiçosos que a patroa lhe deita.

Uma obra, a meu ver, incontornável para quem procura compreender melhor o panorama do micro "neorrealismo" literário português. A passinhos de bebé, cá me vou aventurando na nossa literatura lusa. E tem valido muito a pena...

Classificação: 4****/*