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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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Em torno das minhas leituras!

Servidão Humana #2

Algures no Goodreads surge uma review a este livro, com uma classificação bastante depreciativa, em que o identifica como “uma sucessão de erros da personagem principal”, é vê-lo cometer um disparate atrás do outro. Eu concordo com isto, mas adoro o livro por esse mesmo motivo. Acho que acabei de entender o que é que o Maugham pretendia com este livro: vêem-se assim expostos os vícios e as fraquezas de uma civilização a quem nada está vedado. As possibilidades são infinitas. Desde o meu último update, o Phillip já esteve em Inglaterra (Kent) e na Alemanha (Heidelberg), e também em grandes urbes como Londres ou Paris. Já trilhou uma espécie de Introdução à Contabilidade, que emerge na viragem do século como profissão de novos cavalheiros, e estuda Arte em Paris. No novo século é-lhe até difícil distinguir um cavalheiro dum comum trausente. No novo século as mulheres têm famas dúbias e envolvem-se em escândalos amorosos (mesmo as solteiras). Viveu um envolvimento conturbado com Mrs. Wilkinson, uma criaturinha que ele quase abomina mas da qual se serve apenas porque, na visão de Phillip, estava na hora de ter um romance para narrar aos amigos. Se Phillip é uma personagem amorosa, admirável? Não, Phillip é, na minha opinião, uma marioneta. Dança ao sabor das milhentas possibilidades do novo século. A Europa inteira é-lhe um anfiteatro de ruelas por onde se embrenhar. A onde ir? O que aprender? O que fazer? Quem ser? Phillip está perdido. Podendo ser qualquer coisa, dispersa-se. Terá vinte e poucos anos e já desistiu da carreira eclesiástica (desacredita Deus), já largou um ano de estágio em Contabilidade, está agora a desencantar-se com o seu parco talento para a pintura numa escola de Paris. Mas a culpa não é de Phillip, a culpa é dos tempos. Os tempos obrigam-no a ter um caso amoroso - e ele é muito susceptível ao que pensam dele, é muito orgulhoso e tímido também -, os tempos obrigam-no a deslocar-se para onde a vida fervilha realmente, a Cidade das Luzes, os tempos obrigam-no a querer imitar um Manet ou um Monet, um Renoir ou um Degas. O desafio é a limitação do seu talento aos seus almejos. Ele nem sequer é uma pessoa efusiva, mas deixa-se absorver pelas personalidades marcantes que vão surgindo aqui e ali, todas elas mais fortes do que ele. Ele é  uma sombra da luz que os outros emanam, absorve-os e tenta seguir-lhes o exemplo, quase sempre com fraco desempenho. Impressiona-se facilmente e, apesar de ser inteligente, é demasiado ingénuo (e novo) para se conhecer a si próprio. Está ancorado às convenções, ao que parece bem, enquanto brame que é um homem moderno e dono do seu destino. É uma alma fraca, ansiosa por se ligar a outras, ciumento, cobarde demais para ser cruel ou directo, persistente mas também teimoso, desmotivado e desmoralizado pela anomia social do século que se aproxima.

Servidão Humana #1


Conheci o Somerset Maugham através d’O Véu Pintado, e conheci O Véu Pintadoatravés da adaptação de 2006 com o Edward Norton e a Naomi Watts. Filmeprecioso, um olhar íntimo sobre a vida privada de um casal dos anos 30. O livroé diferente; é desconcertante na sua abordagem ao coração humano, à inclinaçãoincontornável ao erro, ao mais fácil, ao queimar-se uma outra vez na mesmachama. A profundidade humana é tocante, fascinante e qualquer leitor seidentifica facilmente com estes espectros erróneos que o Maugham descreve. Foium romance um pouco mais da minha linha, no sentido em que há uma relaçãocentral como fio da meada. Há a China, a cólera e a mulher infiel. E pronto, euestava rendida. Não precisei de muito para penar pelo seu “Servidão Humana”. Jámencionei que, de visita à Russborough House, em Wiclow (Irlanda), parei numabiblioteca enorme à procura dum autor que conhecesse e, de entre todos os nomesdesconhecidos, apenas Maugham me acenou? Foi como estar, subitamente, em casa.

SPOILERS, SPOILERS ALL AROUND!

0-135
O livro começa com a morte de uma mãe. Uma criança órfã queanseia por carinho e por vitimar-se. É humano, será que vale a pena dizermosque quer vitimar-se? Trata-se apenas de tirar alguma vantagem das desgraçaspessoais. Para este rapazinho, isso espelha-se no abraço, na palavra decompaixão, nos mimos que podem servir de recompensa à perda da mãe. Nestaprimeira centena de páginas podia já o romance encerrar-se, e eu estaria járendida e apaixonada. Não há romance, há apenas relações humanas. O servilismo,a existir, é do eu perante sipróprio. Este Phillip Carey, esta pessoa tão comum e, contudo, tão intrigante,é já uma das minhas personagens favoritas de sempre. Isto porquê? Phillip sofrede todas as mesquinhices humanas: vaidade, mentira ocasional, orgulhoexacerbado, ciúme injustificado, ocasionalmente inveja. Cresceu à sombra dumtio vigário e, por isso, nunca duvidou de Deus ou da veracidade absoluta dadoutrina da Igreja Anglicana. Nunca,até certo ponto. Nesta primeira centena de páginas Phillip foi já confrontadocom a possibilidade de vir a tornar-se também ele vigário e, posteriormente,começa a questionar, através de conhecimentos que faz na Alemanha, longe doKent onde cresceu, se existirá realmente uma religião verdadeira ou um deus único. O que estou a apreciar é,sobretudo, o meu desbastar dos receios que alimentava quanto a este livro; é umlivro enorme (lê-se incrivelmente bem), Somerset é um grande escritor, será queconseguirei acompanhá-lo? (ele esforça-se por vir ao meu encontro sem, noentanto, me tomar por imbecil), será um pseudo-intelectual? Terá algo aacrescentar-me? (o autor atira-nos para os olhos a ignorância de Phillip  maisgritante a cada vez que algo de novo lhe é ensinado. Tão vastas as extensões,depressões, viragens de rumo da Natureza humana num livro com ainda tanto paraoferecer.
Philipp é tímido, tem pé boto, é inteligente mas tantas vezes estes doisfactores impedem-no de expressar essa inteligência e é tomado por idiota. Cadapessoa com que se cruza – as que ama e as que odeia – são palpáveis eapaixonantes a seu modo. Mr. Carey, o tio vigário. Mrs. Carey, nunca mãe, tiade sangue, frágil e submissa (queixa-se,porque é mulher, obedece, porque é esposa). Mr. Watson, o director decolégio religioso que ri demasiado alto e é bruto a demonstrar carinho pelosalunos. Mr. Perkins, director da escola preparatória, descendente de umfanqueiro, por isso desprezado pela trupe de intelectuais abastados que ensinamnessa escola, tão inteligente e perspicaz que é finalmente com ele que asagacidade de Phillip se expande.
Phillip a descobrir o poder da literatura para alheamento dos que vivemexistências infelizes. Phillip a aprender a ser selectivo na Literatura. Phillip a considerar a Igreja Anglicana como um elemento de conforto na suavida. Phillip a considerar deus umultraje a igreja um embuste. Phillip a considerar a sua orfandade motivo depena, de dessabor. Phillip a considerar o seu pé boto um entrave para criarligações. Phillip a agradecer a deus pelo fardo do pé boto, que lhe permitiucrescer mais ou menos à margem dos restantes, aculturando-se enquanto osrestantes jogam futebol. Phillip a querer alguém – um amigo – só para si. Phillip  odiar esse amigo. Phillip a querê-lo de volta. Phillip a quererdesistir da escola, a lutar afincadamente para consegui-lo. Phillip inconsolável, irritado consigo mesmo, por ter conseguido deixar a escola,vencido a batalha, quando afinal tudo o que quer é ficar. E a sua comoção face à beleza, à arte, à natureza, surge como um marco importante na vida de qualquer ser humano. Foi naquele dia que primeiramente testemunhou a beleza, e a sua vida mudou.
Estou arrebatada, encantada por tanta complexidade. Estão aqui algumas dasmelhores personagens com que tive o prazer de privar na Literatura, juntando-sea Kitty Fane d’O Véu Pintado, Scarlett O’Hara e Rhett Buttler do E Tudo o VentoLevou, e Dr. Victor Frankenstein e o monstro, do livro homónimo ao médico.

#86 BESSA-LUÍS, Agustina, A Sibila

Sinopse: A Sibila é um romance de Agustina Bessa-Luís. Sibila, que remete para a figura clássica da Sibila de Delfos, significa adivinha e refere-se à personagem Joaquina Teixeira, a Quina. O livro não se atreve a narrar a história do nascimento à morte da protagonista, mas contou a vida de duas gerações anteriores da família Teixeira e duma posterior e ainda de outras famílias e amigos próximos desta. Narra conspirações, corrupções e intrigas de parentes, criados, amigos e inimigos. De passagem ocorrem críticas à burguesia rural, mas no romance avulta sobretudo uma reflexão sobre a dimensão metafísica do ser humano. Quina não tinha poderes sobrenaturais, era apenas atilada e prática conselheira; ninguém da sua igualha a tratava por sibila. Morreu velha e doente, mas orgulhosa da casa que salvara da falência e da fortuna que amealhara. A história começa e termina com Germa, sua sobrinha, filha do irmão Abel, que representa uma geração já urbana, desenraizada dum espaço a que Quina sempre se sentira presa.

Opinião: De vez em quando acontece-me ler um livroonde perco o pé. Em relação à “Sibila”, da Agustina Bessa-Luís, julguei-me naeminência de me afogar. A cerca de setenta páginas do fim (é um livro pequeno,de 248 páginas) recuperei esse pé, e tornou-se um gosto nadar por estas águas.Perguntei-me, inclusive, o que se terá passado nas restantes páginas para quelhes tivesse tamanho alheamento. Já próximo do fim identifiquei o factor emfalta n. 1 - a convergência, a eminência de uma revelação, uma história com a estrutura“habitual” (facilitada, vá), do género 1. problema 2. tentativa de resolução3. solução! Neste livro estende-se sim a narração da vida de uma família doMinho - penso que seja o Minho, devido a alguns elementos culturais queidentifiquei - vinho verde e filigrana entre os mais óbvios. Mas sem umproblema, um mistério, um segredo por desenvolver. É um simples (not sosimple, though) relato de algumas gerações cujas vivências se deram sob omesmo tecto. É esse o principal fio da meada, no livro - a casa da Vessada,como nenhum outro. Dando por mim a apreciar finalmente o livro - logo quandoestava prestes a findar-se, identifiquei o factor em falta n. 2, o que meimpediu de segui-lo com sofreguidão desde o início: não é uma história de amor,não há, tãopouco, amor em lado algum. Não há, nesta obra, qualquer vestígio deamor romântico. É um relato um pouco cru dos afectos, como se estes estivessemsempre suspensos da utilidade que nos possam ter, do quanto estamos dispostos adarmos de nós, do que somos e do que queremos que os outros pensem que somos.Há amor, sim, mas um amor conturbado, ora devoto, ora despeitoso, oraamargurado por ser amor, ora orgulhoso de não ser outra coisa qualquer.Deixem-me tentar explicar-me melhor, num discurso bem mais básico do que o damestria fluida da Agustina:

O livro tem dois marcos temporais - que eutenha identificado - o ano de recuperação da casa da Vessada, 1870, e aImplantação da República, porque desaparecem dos carros (a tracção animal) osbrasões. Fora isto, o tempo é algo demolidor, transversal, algo que mesclatodos e que não discrimina ninguém. A história não tem um elo de ligação muitoacentuado. A passagem temporal é algo ténue, é contada como que algopercepcionável. Isto é, ora a pessoa se sente nova - e todos ao seu redor sãojovens, ora a pessoa ainda se sente nova e enérgica, mas todos ao seu redor jásão velhos, ora a pessoa já está velha e acabada e os restantes lhe parecemmais fortes. A casa sofre algumas fases que acompanham o vigor de Quina, apersonagem principal. Primeiro é totalmente destruída por um fogo, gravando-seem seguida o ano de 1870 na varanda. Em seguida Quina nasce, a propriedadecomeça a recuperar-se e a prosperar discretamente. Quina atinge a juventude commais vitalidade que a mãe e, tendo o pai falecido, assume naturalmente o rumoda propriedade; impõem-se-lhe. É nesta época que, pressupostamente, se encontramais aguçada a sua capacidade de “sibila”, de vidente, de mulher do oculto, dasintuições das entrelinhas da vida. Mas confesso que de vidente não lhe vimuito. Se calhar procurei literalmente esse dom quando, na realidade, se tratade mexeriquice de vizinhos, de cegos perante um elemento que vê. Penso que oseu condão de bruxa é apenas a sua inteligência límpida por entre tolos, o seuconhecimento do outro que a faz sobrepôr-se-lhe, conduzi-lo, extrair-lhe o quepretende. Na Quina denoto uma certa pretensão, um certo desejo preemente de serdiferente dos outros, mais sensitiva, procurada para conselhos e rumos, livrepara proferir desmandos. No fundo, ela quer ser mais do que um adereço, doisbraços, suor, num mundo de homens, e vale-se assim daquilo que é temido - emcertas épocas combatido, noutra tolerado com o respeito do receio - nasmulheres; o sexto sentido, a adivinhação, a sensibilidade para prever desfechos,a esperteza feminina equiparada a feitiçaria. Nunca a vi a fazer mais do queumas rezas aos vizinhos, mas estes próprios a apelidam de “sibila”, e ela gostadisso. Com o amadurecimento, contudo, passa da vaidade à quase apatia. Torna-semais humilde, passa a reconhecer valores - como a simplicidade forçada de quemvive bem mas não quer ostentar - que outrora lhe causavam espécie. Uma dasminhas personagens favoritas é o Custódio. Lembrou-me o Heathcliff do Monte dosVendavais. Aliás, muito deste livro me recordou o Monte dos Vendavais, masenquanto n’A Sibila a natureza humana se agita nos sobressaltos da vida, naobra-prima de Emily Brontë agita-se nas incongruências do amor.


Quando se aproxima do fim – para mim,mera leitora – torna-se mais fácil de compreender, embora continue a primar pela complexidade. Que princípios moveram,afinal, esta personagem, esta Quina? O que, na vida, lhe foi mais importante?Apesar da luta por se impor, por ser diferente sem no entanto ofender, aque convenções é incapaz de fugir?
“A Sibila” é um romance complexo, difícilde digerir. Tive alguma ajuda ao adquiri-lo na edição da Guimarães editores emsegunda mão, porque todas as palavras difíceis (que são aí cinco por página)vinham sublinhadas e com a respectiva definição na margem, o que me permitiulê-lo em três semanas em vez de três meses. Arrastou-se sempre, contudo, aimpressão perturbadora de não compreender a totalidade do que estava perante osmeus olhos.
Penso que um dia o lerei de novo - com aatenção sobre-humana que dediquei às últimas dezenas de páginas -, porque é-mesempre precioso ver uma mulher erguer-se, com os seus defeitos e fraquezasinerentes, e vingar num meio de homens.
Voltarei, sim, a ler Agustina Bessa-Luís,quase certa de que encontrarei a mesma perspicácia, a mesma profundidadehumana, em qualquer outro dos seus romances.

Classificação: 4****/*

#85 MARTEL, Yann, A Vida de Pi

Classificação: 5*****

Sinopse: Quando Pi tem dezasseis anos,a família decide emigrar para a América do Norte num navio cargueiro juntamentecom os habitantes do zoo. Porém, o navio afunda-se logo nos primeiros dias deviagem. Pi vê-se na imensidão do Pacífico a bordo de um salva-vidas acompanhadode uma hiena, um orangotango, uma zebra ferida e um tigre de Bengala. Em breverestarão apenas Pi e o tigre.

Opinião: Este livro – e o respectivo filme – estãoenvoltos em muito falatório. Primeiro os elogios à tecnologia utilizada pararecriar, no filme, um tigre e o ambiente inóspito do pacífico. Ang Lee ganha,felizmente, o Óscar pela direcção deste filme sublime. Uma obra gritante debeleza, espiritualidade e talento. Não imagino um ocidental a consegui-lo. Masquanto ao filme já falei aqui. Entretanto também o livro havia sidopremiado com o Booker Prize. Yann Martel é acusado de plágio – Max e osFelinos, de Moacyr Scliar seria a fonte original. É ainda criticado pelaarrogância com que reagiu a essa acusação. Eu lavei-me desse escândalo e isolei-o do conteúdo da obra.
Li, em resenhas de quem já tinha percorrido as suas páginas, que a obrasofre um corte abrupto. Aproximadamente as cem primeiras páginas falam de umavida na Índia. Um nome, “Piscine”, uma cidade, “Pondicherry”, um jardimzoológico com um rinoceronte que, por se sentir solitário, partilha o espaçocom um rebanho de cabras. A Índia… os cheiros, os rostos, as crenças. E umrapaz simultaneamente hindu, cristão e muçulmano. Uma aventura – poderiadizer-se -, visto que este rapaz lingrinhas e vegetariano sofre um naufrágio efica à deriva no Pacífico com um tigre, uma zebra, uma hiena e um orangotango.Mas não é bem isso, é ainda mais do que isso. Uma aventura interior, contra anossa própria natureza, os nossos limites, o nosso corpo que cede mesmo quandoa mente se esforça por continuar, as nossas fraquezas e melindres. Um contosolitário, angustiante, ainda assim enternecedor. Eu quase sentia a doçuraintrínseca entre Pi e o tigre. Tanto o Martel como o Ang Lee conseguiram tornaressa relação sólida, palpável, subtil e credível. É um feito. Sorri comdiversas nuances da interacção entre este rapazinho indiano e otigre.
De facto há uma mudança abrupta da primeira parte do livro para a segunda.Não necessariamente má, como fui levada a crer. A primeira parte é sobrenecessidades de ser enquanto a segunda é sobre as de sobreviver. Um livro quenos obriga a rever quem somos e até onde iríamos se a fome, a sede, o medo damorte, o definhar lento, nos instigassem.