#196 STEINBECK, John, As Vinhas da Ira
"The Grapes of Wrath became the best-selling book of 1939, selling almost half a million copies (at $2.75 a copy) in the first year of publication alone. In 1940, the novel also won the Pulitzer prize for fiction, and would subsequently be taught in schools and colleges across the United States."
As Vinhas da Ira é a obra-prima de John Steinbeck, publicada em Abril de 1939. É, também, um livro controverso, e o romance americano mais lido e comentado do séc. XX. A controvérsia é facilmente explicada: onde se fala de oprimidos, traça-se, com naturalidade, o perfil do opressor. E os opressores neste livro de monumental coragem e pertinência, eram a Associated Farmers of California, bem como os bancos e os grandes proprietários capitalistas.
As palavras chave que acompanham a narrativa, ou qualquer artigo que se aceda a propósito deste vencedor de um Pulitzer em 1940, com meio milhão de cópias vendidas só no ano do seu lançamento, são dignidade, perseverança, pobreza. Algures, numa sinopse, li algo como “Um romance sobre gente decente em condições intoleráveis”. Pensemos que é a época da Grande Depressão e um pré-II Guerra Mundial, o mundo está tenso e a economia quebrada. Há teorias académicas sobre superioridade da raça, sobre eugenia. Em 1932, Erskine Caldwell publicara A Estrada do Tabaco que, a meu ver, é a sua perspectiva sobre a indignidade da população pobre, ignorante, suja. Como se não bastasse, dá-se ainda o fenómeno ecológico Dust Bowls, são os Dirty Thirties e formam-se tempestades de poeira sobre o centro dos Estados Unidos, afectando as colheitas dos estados do Oaklahoma, Kansas, Texas e Arizona. Estima-se que, na década de trinta e até 1939, 116 mil famílias (cada uma possivelmente numerosa), se tenha deslocado das Grandes Planícies para a Califórnia, para escapar à seca, às tempestades de poeira e à pneumonia e outros males causados por essa circunstância. Fugiam também à fome, porque os bancos e grandes proprietários vieram cobrar hipotecas de gente endividada após uma década de dificuldades, e arrasaram-lhes as casas com tractores.
"Se me não dissessem que devia ir-me embora, era provável que eu, a estas horas, estivesse na Califórnia, a papar uvas e a descascar uma laranja quando me apetecesse. Mas, mandarem-me embora estes filhos da mãe, isso não, por Jesus. Um homem como eu não se submete assim."
As Vinhas da Ira conta a saga da família Joad que, após alguns meses na estrada, se mescla por completo com os outros Okies (o modo desdenhoso como os Californianos vão recebendo cada vez mais e mais destituídos). Acompanhamos a família dos seus vários prismas. Primeiro, do ponto de vista individual, o foco principal incide sobre o jovem Tom Joad. Os contornos de cada membro da família Joad são muito nítidos, muito consistentes, e Tom é um tipo tranquilo, malgrado ter acabado de cumprir pena por homicídio. Regressa a casa sem fazer ideia de como a situação se agravou para toda a família (todo o Estado) durante a sua ausência. Steinbeck dá-nos assim a oportunidade de analisar a devastação do seu mundo pelos seus olhos de retornado. À poeira junta-se o oportunismo, e a comunidade está de cabeça para baixo, dividida entre executores de dívidas e executados. O crédito sufoca-os também. À passagem do tractor, nada fica de pé. A família carrega então a sua velha camioneta com os pertences que consideram necessários, e partem de Sallisaw, como todas as outras, rumo a Oeste.
Não demora muito para que os Joads se dêem conta de que percorrem a Estrada 66 à semelhança de centenas de outros veículos vergados sob o peso da carga de uma vida inteira, e que vão tolhidos pela mesma necessidade de água, comida e trabalho.
"A 66 é o caminho de um povo em fuga."
O que é de louvar é o modo como os Joad nem por um instante perdem a dignidade. Ou mesmo a generosidade, o companheirismo. Damo-nos conta do papel de amparo de um país, das suas leis. Do modo como a economia se isola de tudo isso, de como o capitalismo, por vezes tão associado à verdadeira essência da América, também causou gravíssimos danos colaterais nalguns momentos da História. Num país já adverso ao comunismo, torna-se evidente, nas linhas de Steinbeck, a necessidade da greve, da união e da subversão para a conquista de direitos básicos e inalienáveis. A etiqueta de vermelhos recai sobre os homens que exigem nada mais do que trabalho digno, respeito. Homens que, apesar de se cavar sob eles o fosso da fome, das epidemias e do desconforto físico, resistem a entregar-se à pilhagem e ao crime. Homens que, enquanto podem, recusam a mendicidade.
Os alicerces da família, cujas intempéries parecem empenhadas em desmantelar, são sem dúvida Tom – o seu espírito vivaço, a sua tranquilidade e o seu crescente sentido de dever, e a Mãe. A Mãe é ela própria uma entidade. Um elo, a alma pulsante da família. Não consigo deixar de comparar esta mulher admirável às marionetes de Hemingway, e fica desde logo claro porque Steinbeck, na minha opinião, lhe é tão superior.
O romance tem um senso épico, civilizacional. Não admira que se escrevam canções sobre ele (a melancólica/energética The Ghost of Tom Joad, em tantas versões distintas. Que se discuta na escola. Que tenha enfurecido os opressores e granjeado o apoio de Eleonor Roosevelt. Que tenha, de facto, impresso a etiqueta de vergonha nos tornozelos dos fazendeiros impiedosos da Califórnia que, perante a situação da quantidade de a oferta de mão-de-obra ser muito superior à oferta de lavoura, contribuíram para o colapso daqueles miseráveis que, como único pecado, tinham o facto de não ser proprietários nem ter o apoio do estado nem d’o Auxílio. É um Êxodo, de facto. Não pude deixar de compará-los ao povo Judeu, em marcha para fugir à escravidão e à brutalidade dos egípcios. Aqui é o povo das Grandes Planícies, pessoas que, de repente, se dão conta de que são um todo marchante, à beira de um abismo que não cessa de se aprofundar. E vão suportando, suportando, e a ira cresce.
"Ele disse uma vez que tinha ido para o mato, à procura da própria alma, e que, por fim, descobrira que não tinha uma alma que fosse só dele. Disse que tinha unicamente uma pequena parte de uma alma enorme. E ele achava que não valia de nada andar por sítios desertos, porque aí, a tal pequena alma que ele tinha não servia para nada. Só tinha utilidade quando estava junto das outras com quem formava um todo. (...) Mas agora sei que um indivíduo solitário não tem préstimo nenhum."
Saliento ainda a prosa acessível de Steinbeck, embora, por vezes, o seu discurso, os seus diálogos, tenham contornos Bíblicos, místicos. Quando li A Um Deus Desconhecido, reconheci traços de Jesus na personagem principal. Aqui, com facilidade, podemos reconhecer um outro Jesus em êxodo, e uma Maria sofrida mas de pé, a segurar a família ao seu redor e contra o seio.
E o discurso transcendente, que nos deixa com a garganta apertada e a sensação de estarmos perante algo maior:
"Estarei em toda a parte, em qualquer sítio para onde a senhora se puser a olhar. Onde quer que se lute para que a gente com fome possa comer... eu estarei presente. Onde quer que a polícia estar a bater num tipo, eu estarei presente. (...) Estarei onde quer que vejam criaturas a gritar de raiva... e estarei onde as crianças sorriam porque têm fome, mas saibam que a ceia não tarda. E quando a nossa gente comer aquilo que plantar e morar nas casas que construir... então também estarei presente."
É-me evidente que um dia voltarei a lê-lo.
Classificação: 5*****