#135 MÁRQUEZ, Gabriel García, Crónica de uma Morte Anunciada
"- Mataram-me, menina Wene"
A minha primeira experiência com Gabriel García Márquez foi, precisamente, com "Cem Anos de Solidão". A cada livro ou mesmo frase que leio dele,posso apenas constatar que não estava preparada para ler essa obra-prima quandome aventurei nela. Não consegui gostar, não me apaixonei pelo surrealismosul-americano que tanta beleza imprime às obras deste autor.
Na altura alguém, vendo-me com perfil de escritora no Goodreads, veio dizer-me,em privado, que só poderia escrever caca se tinha atribuído 1 estrela àobra-prima do Gabo. Na altura evoquei o evidente: não me identifiquei, nãogostei. Uma classificação a uma obra artística é sempre mais um manifesto depercepção do que algo de aproximado a uma verdade absoluta. Não há verdadesabsolutas quanto à arte, mas há verdades incontornáveis. E é incontornável queo Nobel colombiano é um contador de histórias exímio.
Há um grande debate aí pelas redes sociais, a propósito da qualidade dasobras/gosto pessoal dos leitores. Eu digo isto: se se quer avaliar a alma de umlivro, a sua qualidade humanística, olhe-se aos leitores. Quem leu? Quemgostou? E daí retirem as vossas conclusões. Já que usei a palavra caca acima,vou chamá-la de novo: escreve-se muita caca hoje em dia. Há um culto do"escrever": as palavras caras, os floreados, o cliché, a piada fácil,a tentativa de criar um tcharan noencerrar da ideia que, na maioria das vezes, me suscita um "?" e umenrugar de testa. Mas que raio...?
Onde anda o conteúdo? Onde andam os contadores de histórias? Eu digo-vos, a meuver, onde é que eles andam:
À escuta. Atrás das portas, nas esquinas, nos becos. É o tipo de cigarro nasbeiças a duas mesas da vossa, ao pequeno-almoço. É o que finge ler o jornalenquanto vocês conversam com a vizinha na paragem de autocarro. É o que olhapela janela do metro enquanto vocês falam ao telefone. É o miúdo que se põehirto enquanto vocês discutem, em casa e de janelas abertas, confiantes queninguém vos ouve. E que depois guarda isso para si, ou corre em busca de umacaneta e do verso de um talão para apontá-lo. É quem saca da máquinafotográfica ou do gravador, ou que digita as vossas palavras à velocidade queas verbalizam, para não perder pitada da vossa alma falada. Daquilo que vos saicom naturalidade.
E Gabriel García Márquez é um observador nato. Os diálogos são incólumes, sãos,palpáveis. Chegam-nos por entre sopros do hálito das personagens, dos seuslábios gretados, dos seus dentes lascados, das suas sinusites e dos seuscatarros. O homem é um extractor de almas, e quem o é sóprecisa de meia dúzia de páginas para contar uma história antes de cair narepetição.
Crónica de uma Morte Anunciada tem 107 páginas na versão em que ali, e é de uma riqueza literária inegável (uma verdade incontornável).
Santiago Nasar está condenado, todos os sabem. Mas aí entram as motivaçõeshumanas, as suas fraquezas, as suas crenças pessoais "ah, eles vão láagora matar o rapaz". "Mas alguma vez?", e joga o seu vastoconhecimento da essência de um povo que é seu e de um passado de que tambémcomunga. A força da tradição, que nos fortalece em certas situações e nosamordaça noutras, o assassino que não quer matar mas que o deve à honra, o povoque entende as razões e, ainda assim, leva flores ao morto.
Estou deserta (vim agora do Algarve) de continuar a lê-lo. "O Amor nosTempos de Cólera" e agora esta maravilhosa crónica puseram-me alerta paraaquilo que tenho andado a perder. Espero que se deixem prender com tantaintensidade quanto eu.
Um 5***** no absoluto matemático deste número infinito.
Sinopse: Vítima da denúncia falaciosa de uma mulher repudiada nanoite de núpcias, o jovem Santiago Nasar foi condenado à morte pelos irmãos dasua hipotética amante, como forma de vingar publicamente a sua honra ultrajadae sob o olhar cúmplice ou impotente da população expectante de uma aldeiacolombiana: é esta a história verídica que serve de base a este romance, e que,logo nas suas primeiras linhas, é enunciada. A capacidade de Gabriel GarcíaMárquez em reconstruir um universo possuído pela nostalgia, mágica eencantatória da infância e a sua genial mestria em contar histórias fazem desteromance mais uma das obras-primas que consagraram definitivamente este autor.