#131, MÁRQUEZ, Gabriel García, O Amor nos Tempos de Cólera
Sinopse: O Amor nos Tempos de Cólera constitui na obra de Gabriel García Márquez um marco equiparável ao do célebre Cem Anos de Solidão, considerado até hoje, a sua obra-prima. «O Amor nos Tempos de Cólera é um romance (...) onde se fundem o fulgor imagístico, o difícil triunfo do amor, as aventuras e desventuras da própria felicidade humana (...) Ao longo dum flash-back de quatrocentas páginas vertiginosas, compostas numa espécie de pauta estilística e musical, da qual não estão sequer ausentes o humor, a poesia e a vertigem das imagens (...) o leitor recupera o ritmo enca
ntatório duma escrita que não tem conhecido imitadores à altura.
Opinião: Em1985, quando publicou “O Amor Nos Tempos de Cólera”, Gabriel García Márqueztinha 58 anos. Diria mesmo que é uma idade ainda precoce para uma obra tãomadura quanto a que terminei agora de ler. Como sempre se disse que “Cem Anosde Solidão” era o ex-libris da obra do escritor colombiano falecido a 17 deAbril 2014 (faz depois de amanhã um ano), comecei por lê-lo nesse registo. Masas repetições dos nomes familiares, os amores e desamores surrealistas de umamesma família ao longo de várias gerações enevoaram-me. Terá sido há, talvez,cinco anos. Talvez vinte anos não seja idade suficiente para se compreender agrandeza de um escritor com este nível de profundidade.
“O Amor nos Tempos de Cólera” é, sim, um livro de amor. Um livrosobre um amor maior, daqueles que tudo esperam e tudo suportam. Por vezes éangustiante ver como os anos engolem as personagens principais, Fermina Daza - a“Deusa Coroada” -, Florentino Ariza, que aos 20 anos já parecia velho, e o Dr.Juvenal Urbino, pragmático e metódico em cada gesto. Faz-nos pensar acerca davida e das suas coincidências e tragédias, como a de um homem que, tão jovem,se deixa enlevar por uma menina-mulher, e o que torna esse amor tão grande queo obriga a levar uma meia-vida, uma vida sempre vivida na expectativa de um diavir a ganhar o afecto de Fermina. Que fez Fermina Daza para o encantar destemodo? Ela nunca se esforçou por conquistar-lhe as graças, nem por mantê-las.Pelo contrário, é teimosa, por vezes um tanto rude, e não é decerto alguémacessível ou com quem dê gosto falar. É uma mulher difícil, de mais acção doque palavra, que se deixa iludir por um amor que se lhe apresenta proibido e,dando azo à casmurrice que a caracteriza, compromete Florentino para a vida.Quando se dá conta de que o que sentia era uma mera ilusão de jovem, jáFlorentino vive somente para ela, e por ela gere toda a sua vida, a ela dedicatodas as suas lágrimas, e nela deposita a sua única esperança de felicidadenuma vida que está condenada à banalidade.
Abeleza do livro consiste, claro está, na mestria com que o Nobel colombianodirige a passagem do tempo, as perspectivas dos três personagens principais, omodo como os sentidos se conjugam para criar imagens vívidas do afável Urbino, doreservado Florentino, da volúvel Fermina. A narrativa crua do autor, que nãorecai em floreados mas sim num poder de descrição que só pode ser descrito comoum “dom”, atribui uma beleza quase negra ao romance. Tudo nele tem um lado beloe um lado oculto. A vida que se vive de prazeres fugazes porque a felicidadetotal nos está vedada. A vida enganosa de quem teimou em seguir pela estradatal, e que só se dá conta de que o faz por teimosia, e por nada mais, quando édemasiado tarde. O retrato da sociedade da época, das viúvas-alegres àscarpideiras, as ruas da cidade dos vice-reis, os vícios e virtudes dos humanos,todos os estratos sociais tão bem ilustrados, caídos nas mesmas fraquezas, rastejantesnos mesmos receios… - a morte, a velhice, o desamor.
Históriasde amor há muitas, mas o imaginário de García Márquez é um só e presenteou-noscom esta obra singular: um amor diferente de todos, sofrido, calejado,cimentado ao longo de mais de cinquenta anos, mas concretizado, como todos osamores que realmente o são.
Umlivro cujas páginas, mais tarde, quererei, com certeza, revisitar. Quem nuncaleu um livro assim – que vejo um tanto aproximado, de facto, de um Saramago oude uma Isabel Allende, pelo modo como as pessoas vivem em diversas dimensões (arealidade, o passado, o futuro projectado, a superstição e o sonho) – não pode,tão-pouco, imaginar a complexidade desapiedada de uma obra assim.
Classificação: 5/5*****