#113 McCullough, Colleen, Pássaros Feridos
Fora-me dito que “Pássaros Feridos” era um livro sobre oamor proibido entre uma nova zelandesa e um padre. Colocá-lo assim é simplistademais. É um livro que põe em perspectiva as vidas, os papéis, as obrigações,as dores de alma e os desafios que cada um está fadado a enfrentar.
A história começa com uma família deimigrantes irlandeses com várias crianças a passar dificuldades na NovaZelândia, no início do séc. XX. É no seio dessa família que a única menina,Maggie, começa a procurar o seu lugar no mundo. Nesta etapa da história surgemos primeiros pontos fortes da mesma; a relação entre Fee e Patsy, os pais deMaggie, e a doçura premente entre Maggie e o irmão mais velho, Frank.
Julguei que tudo se passaria aí,nessa pequena cabana na Nova Zelândia, onde Maggie ajudaria sempre a mãe com asmil e uma tarefas do lar e os seus muitos irmãos cresceriam para se tornartosquiadores como o pai. Mas então os ventos chamam-nos para a Austrália e,desembarcados em Sydney, seguem para Drogheda, uma próspera fazenda de criaçãode carneiros australiana. Como herdeiros dessa fazenda, os Cleary começam assima adaptação a uma vida com menos desafios, mas numa terra de grande beleza e degrandes durezas também. Ora enfrentam dilúvios, ora sobrevivem a dez anos deseca. Ora a vida animal tenta atacá-los – e inclusive arrebata-lhes vidas – ou desabamtempestades com cargas eléctricas tão fortes que pegam fogo a hectares deterra.
É neste cenário de adaptação que oPadre Ralph de Bricassart conhece Maggie e a sua família, e se propõe a ajudá-loscom a adaptação e a proteger Maggie, posto que a mãe parece vê-la como algo deincómodo e os irmãos se vão tornando demasiado duros para olharem pelas suasnecessidades. Ralph antevê na pequena Maggie o universo de brandura egenerosidade em que ela mais tarde se tornará e assim, nas circunstâncias mais improváveis, nasce um amor condenado àgrandiosidade da tragédia.
O livro atravessa quase todo oséculo XX. Do que a II Guerra Mundial significou para a Austrália, comopossessão britânica, às muitas revoluções que tomaram a Europa e a mudaram,tornando-a naquilo que é hoje. Os tempos também mudam; da avó Fee que hesita emabandonar os corpetes e em envergar um vestido leve para os quarenta e cincograus à sombra da Austrália, à neta Justine que é actriz em Londres e adopta airreverência da recente “mini-saia”. Mas não é somente este o ponto forte dolivro – o retrato político-social do mundo ao longo de todo um século. O maissignificativo do livro são, sem dúvida, as relações interpessoais.
Cada uma das personagens principais,de personalidades marcantes – Maggie,Fee, Ralph, a tia Mary, Frank, Luke, Justine, Dane, Rainer, etc., etc., etc., temalgo de tão rico em si que nos rouba o pio. Todos eles passam por verdadeirosmomentos de assombro em que se dão conta de quem são realmente, do quepretendem, dos erros que cometeram, do que mais valorizam e que estão em viasde perder. É um grande livro sobre perseguir-se os objectivos pessoais edeixarmo-nos cegar por eles. É um livro sobre cometer-se erros, assumir-secompromissos, choques de interesses, abdicação. O destino, ali tão marcante,tudo o que vai a voltar, a vida a exigir pagamento para as benesses.
Já praticamente no final, o novoritmo protagonizado por três gerações de mulheres Cleary comoveu-me bastante.Fee, Maggie e Justine são muito diferentes entre si. A primeira abraçou o seudestino sem estrebuchar, a segunda lutou pelo que queria, mas a força doscostumes subjugou-a, e a terceira vive a vida ao sabor das suas vontades.
Confesso que a Justine, embora tenhaaparecido para aí a 75% do livro, se tornou facilmente na minha personagemfavorita. Possuia a firmeza de carácter que faltava à Maggie, embora a própria Maggie não seja nenhum capacho, é um bocadinho mais conformada. Não me admira que causasse estranheza, posto que diz o que lhe passapela cabeça, choca quem a rodeia e não procura agradar ninguém. Comoveu-me asua força – em parte apenas fachada -, o amor incondicional que dedicava aoirmão e, mais tarde, as dificuldades que encontrou para dar-se ao homem da suavida. Por medo de perder, de ser magoada, de querer e não poder ter. O amor éfraqueza, e Justine sabe-o como ninguém.
Todas as personagens sofrem grandesdesenvolvimentos, grandes mudanças proporcionadas pelos tempos, as interacçõese a idade. Foi agradável ver esses envelhecimentos, o tempo parece ser, elemesmo, uma das personagens habilmente arquitectadas pela autora.
Como ponto fraco, que me impede de dar um cinco sólido, aponto duas mortes de personagens importantíssimas para a trama, que se sucedem de um modo pouco convincente e que se dão, também, sem motivo aparente. São um pouco rebuscadas, desenquadradas e inesperadas, embora tenham, claro, uma importância maior para o desenrolar do enredo.
É uma saga maravilhosa sobre umafamília de trabalhadores, de mulheres de época sem a presunção de serem mais doque é esperado delas, mas também sobre o quebrar dos grilhões face aospreconceitos do passado. Um retrato de vidas, melancólico e, por vezes,doloroso. O livro lembra-me muito a filosofia budista, que defende que viver é sofrer. A obra compara os actoshumanos aos do pássaro que pressiona o próprio peito contra um espinho e que,enquanto sofre, solta um trinado de beleza incomparável. Apenas que, no casodos humanos, sabemos o que sucede ao procurarmos o espinho, e ainda assimfazemo-lo. "Pássaros Feridos" traz o conforto da inevitabilidade dos erros.
Vai directamente para a minha gavetados favoritos.
Classificação: 5*****