Sinopse: O inspetor Lobo quer descobrir quem matou Laura. Afonso quer que o deixem escrever o que ele gosta. Gabriela quer que o inspetor Lobo faça o seu trabalho e quer que Afonso escreva o que lhe pedem.
Mas Laura continua morta, os pais dela pressionam as forças policiais, e é preciso apanhar o culpado. Ou serámais que um? Que forças estranhas os rodeiam sem que deem por nada?
Quando Afonso perde a namorada, Júlia, num horrível acidente, vê no luto a oportunidade que precisa para parar de escrever, sem ninguém contestar.
Se o leitor acha que já percebeu este livro, podemos afirmar, com toda a certeza, que não. Porque quando pensa que descobriu o que se passou, Mafalda Santos abre outra cortina com outra realidade, desafiando-nos.Mas quando o fim, finalmente, chegar,pode ter a certeza de que não passará despercebido.
Opinião:A minha estreia nas obras da Mafalda Santos não podia ser mais auspiciosa! Costumo hesitar muito em dar cinco estrelas a um livro, mas a viagem que este me proporcionou foi tão incrível que mas arrancou.
Sei que a Mafalda Santos está ligada ao teatro, ao mundo para lá das cortinas do palco. Neste romance, leva-nos pelos bastidores, mas também pela plateia, e direitos à secretária dos criadores.
A sinopse promete-nos uma investigação, mas depressa esse mote deixa de ser o fio condutor do livro. O que nos orienta ao longo desta narrativa é a profunda reflexão que oscila entre o criador e o produto da sua imaginação, aqui questionada uma e outra vez, em jogos de espelhos, truques de ilusionista, cortinas que se fecham e voltam a fechar sobre o palco. A autora tira-nos várias vezes o chão, e o final é tão satisfatório, tão imprevisível e, ainda assim, em linha com a história, que não me perdoei por não o ter antecipado: o que apenas significa que a autora soube escondê-lo convenientemente do leitor, até ao twist final.
Para mim, isto é a nova literatura portuguesa. Sem fórmula. Sem português inalcançável. Escrita com fluidez, com naturalidade, diálogos credíveis, vivências e rotinas com as quais conseguimos facilmente identificar-nos. Um texto limpo, sem floreados desnecessários, que ainda assim convida à reflexão e nos inquieta e destabiliza. Li-o como escritora que também sou, e adorei a premissa principal. Adorei, acima de tudo, a conclusão que a autora deu a esta obra tão peculiar.
Aconselho vivamente a quem gosta de ler, e mais ainda a quem duvida da qualidade das autoras nacionais!
"I verily believe she thinks it is the writing which made me sick!”
Ouvi o audiobook do projeto LibriVox no Spotify durante uma viagem Évora-Almada, no entanto, penso que o audio nem sequer chegue a 40 minutos. É a prova de que não é preciso um calhamaço para uma obra nos ficar gravada na alma.
Quis conhecer esta obra de Charlotte Perkins Gilman (1860-1935) porque, ultimamente, o livro tem vindo ter comigo por vários atalhos. Volta e meia vem à baila, sobretudo no âmbito da cadeira de Mestrado de Literatura que estou a frequentar, e decidi dar-lhe uma oportunidade. Ouvi-o enquanto chovia fora do autocarro e sem saber nada da autora nem do contexto (sequer o ano de publicação), porque receei que pudesse influenciar-me. Já entendi que as obras acabam por ter mais valor quando há algo de interessante, de curioso, de revolucionário em torno da sua execução ou da vida do/a autor/a. Contudo, acho que as obras devem valer por si próprias sem necessidade de introduzir referências pelo meio, mas achei tão interessante o percurso e os princípios da autora que vou começar por partilhar alguns pormenores da sua vida nesta review. "Charlote Perkins Gilman foi uma escritora, filósofa e reformista norte-americana" segundo a página History of Women Philosophers and Scientists, cuja obra mais importante é esta, um conto autobiográfico publicado em 1892. A obra remete para o período da sua vida em que, após dar à luz a sua única filha, e sofrendo daquilo que provavelmente hoje sabemos ser uma depressão pós-parto, foi incentivada pelo Dr. Silas Weir Mitchell, especialista em doenças nervosas, a adoptar um regime de repouso intenso para ultrapassar a sua "exaustão nervosa". Esse regime completamente vazio de estímulos e de atividade, bem como de sociabilização fora do seu círculo doméstico, quase enlouqueceu a autora. Em 1894 divorciou-se depois de concluir que a vida doméstica não lhe trazia felicidade.
Teve (alegadamente) pelo menos duas relações sérias com mulheres, e voltou a casar-se em 1900, com um primo. Ao contrário do primeiro casamento, esse segundo foi uma união feliz.
Feminista, lutou pela emancipação sobretudo económica das mulheres, deu várias palestras em defesa dos seus direitos e combateu os princípios nocivos da medicina perpetuada por entidades masculinas quanto àquilo que eram considerados "males femininos".
Publicou várias obras, entre as quais poemas e não-ficção, destacando-se talvez Herland, uma utopia baseada numa sociedade exclusivamente feminina. Ao ser diagnosticada com cancro, a autora optou por ser ela a decidir quando e como iria acabar a sua vida. Escusado é dizer que não recebeu qualquer tipo de reconhecimento/louvor pelo seu trabalho enquanto viveu, nem no campo da literatura nem da pintura. Quando ao livro, que ouvi num sotaque adorável de uma narradora que vestiu tão bem a pele da personagem (sem nome), é sublime em todas suas suas subtilezas sendo que, ao mesmo tempo, é brutalmente honesto sobre o mundo interior feminino e a condescendência com que eram tratadas, num estranho binómio condescendência e/ou violência.
A personagem principal fala com o leitor através de escritor secretos, um refúgio durante o seu isolamento numa casa onde irá viver com o marido, o bebé e uma criada durante 3 meses. Logo de início, manifesta o seu desconforto perante o papel de parede amarelo que reveste o quarto onde o marido a "confina" para o seu regime de repouso intensivo. A partir daí, tudo o que manifesta é perturbador, mesmo porque se torna claro, desde início, que esta mulher escreve numa tentativa desesperada de tentar manter a sanidade, de tentar dialogar com alguém (o vazio? o papel de parede?) que a ouça porque, perante o marido, que é médico, e portanto uma autoridade incontestável, e a criada. Segundo a própria:
"I must say how I feel"
Vemo-la proibida de ler, de escrever, de pintar num pincel, porque todas essas atividades inquietam as mentes femininas, a desabafar sozinha, às escondidas, sem o conforto de um livro ou sequer de um amigo ou familiar, porque acaba por ser também o marido a decidir quem lhe faz bem.
Sente-se culpada pela sua condição, por não conseguir amar o bebé como deveria, por se sentir cansada, preguiçosa, sonolenta durante o dia e incapaz de dormir à noite, incapaz de se expressar por receio de represálias do marido, que apenas quer o seu bem, passa muito tempo sozinha e, quando o marido a visita, minimiza as suas ideias - inclusivamente quanto a si própria e ao seu estado de espírito/saúde -, adia conversas importantes, impedindo-a de expressar os seus sentimentos. Finge dormir quando o marido lhe exige horas intermináveis de repouso, obrigando-se a usar uma máscara até para ocultar aquilo que seriam necessidades básicas, como ter sono/não ter. A dada altura, usa a palavra suicídio, noutra, fala em saltar da janela, noutra ocasião imagina-se a queimar a casa por completo para se livrar do papel de parede e do seu cheiro. O final é igualmente interessante, abre as portas a muita discussão.
Uma voz narrativa poderosa, apesar da ternura, da fragilidade, da condição de humano debilitado inerente.
Fiquei assombrada com este livrinho pequenino (e barato!) disponível gratuitamente em inglês em vários suportes legais, e também em português em várias edições relativamente recentes. Ainda bem que não o deixamos morrer.
O objetivo é evitar transportar centenas e centenas de livros comigo, embora, como todo o apaixonado por livros, tenha grande estima por muitos destes volumes. Os «usados» foram lidos, os«usados e autografados» (como os do José Luís Peixoto) foram lidos e autografados com dedicatória para mim. Mas vamos descomplicar, certo? Com centenas de livros por ler, não vou relê-los. Os «novos» nunca foram manuseados, porque foram lidos em e-book ou serão lidos em e-book, porque estou a desapegar-me das versões físicas. No caso de outros, como «Crime na Aldeia», fui apresentadora do livro e recebi dois exemplares novos. Passo-vos um. Quanto ao da querida Susana Amaro Velho, aproveitei a última Feira do Livro para comprar a edição da Aurora, cedo-vos esta com a dedicatória que ela me fez.
Os livros já estão embrulhados e numerados de 1 a 38. Cada pessoa que fizer o pagamento pede um ou mais números (podem adquirir quantos quiserem), e indicam o/s número/s que querem. Se já estiver atribuído, terão de escolher outro. Só há 38 livros, por isso a participação é limitada nesse sentido. Sai sempre o livro que estiver atribuído (secretamente) ao número que querem/que vos calhou.
Alguns livros incluem um brinde: 1 aguarela de 1 paisagem do Alentejo, da minha autoria, em papel Hahnemühle 100% algodão, pintadas com pastilhas de aguarela Gansai Tambi. Há 13 aguarelas entre os livros!
Então, têm casa para eles*?
Podem clicar no link de cada livro para ver a sinopse/edição.
Sinopse: Todos os anos, a 16 de agosto, Ana Magdalena Bach apanha o ferry que a leva até à ilha onde a mãe está enterrada, para visitar o seu túmulo. Estas viagens acabam por ser um convite irresistível para se tornar uma pessoa diferente durante uma noite por ano.
Ana é casada e feliz há vinte e sete anos e não tem motivos para abandonar a vida que construiu com o marido e os dois filhos. No entanto, sozinha na ilha, Ana Magdalena Bach contempla os homens no bar do hotel, e todos os anos arranja um novo amante. Através das sensuais noites caribenhas repletas de salsa e boleros, homens sedutores e vigaristas, a cada agosto que passa Ana viaja mais longe para o interior do seu desejo e do medo escondido no seu coração.
Escrito no estilo inconfundível e fascinante de García Márquez, Vemo-nos em Agosto é um hino à vida, à resistência do prazer apesar da passagem do tempo e ao desejo feminino. Um presente inesperado de um dos melhores escritores que o mundo já conheceu. A tradução é de J. Teixeira de Aguilar.
Não tenho lido em papel, apenas no kobo, mas quis este objeto de arte na minha casa e, ainda antes de ponderar adquiri-lo também no kobo para poder lê-lo com maior conforto, dei por mim recostada nas almofadas e a folheá-lo. Menos de duas horas depois, estava lido.
Nesta última viagem pela mente e a pena de Gabo - segundo os filhos, já debilitado -, o autor coloca Ana Magdalena Bach no centro da ação. É incrível a sensibilidade com que este Nobel colombiano veste a pele de uma mulher e a torna tão real, tão humana, tão palpável. A somar à personagem principal cativante - nos seus desejos, inquietações e defeitos -, temos o retrato de uma família com tudo para ser feliz, mas acima de tudo de uma ilha que se transforma anualmente no refúgio de uma mulher prestes a entrar na menopausa.
A ilha das Caraíbas que o autor nunca nomeia serve também de marcador de tempo, desde os veículos que dela partem e nela aportam, até aos hotéis e respetivas comodidades. Em todos os refúgios anuais de Ana Magdalena há música, noites tropicais, álcool, calor e um homem diferente.
É uma obra muito simples mas, apesar disso, está muito bem escrita e cria um ambiente tão nítido que sinto que estive nas Caraíbas ontem à noite, com um saco de ráfia ao ombro e o bafo peganhento do verão tropical na nuca. Dancei ritmos latinos e dormi com um homem que cheirava a lavanda. É Gabriel García Márquez, por isso não tinha outra opção se não adorar.
Opinião:Há algo de muito terno e genuíno nos livros desta autora. À semelhança de “Pequenas Coisas como Estas” a autora tece uma obra pequena, apenas com as personagens e os momentos necessários, sem se perder em divagações. Depois, traça a sua rotina, geralmente numa Irlanda pobre onde o povo labuta arduamente por alimento enquanto é fortemente influenciado pela igreja e está sujeito à intempérie.
Neste «Acolher», nunca chegamos a saber o nome da personagem principal (ou passou-me completamente ao lado), é uma criança, e isso é tudo o que importa saber. Uma criança que, durante as curtas 65 páginas do livro vai conhecer uma rotina diferente da sua, vai ver o mar, vai comer com abundância, vai andar limpa e bem vestida e, acima de tudo, vai experimentar afeto. É comovente essa estranheza da criança carente e negligenciada para com o afeto. A autora até nisso foi sublime, porque é difícil não chorarmos na cena final.
Podia escrever um ensaio de 300 páginas sobre estas 65 da autora, mas basta-me pedir-vos que lhe deem uma, duas horas, e que me digam se este equilíbrio entre rudeza e ternura não é perfeito.
Sinopse:Uma menina vai viver com pais adotivos numa quinta na zona rural da Irlanda sem saber quando regressará. Numa casa desconhecida, de gente estranha, encontra um calor e uma afeição que não sabia existirem e começa lentamente a florescer. Até que a revelação de um segredo a faz compreender a fragilidade da sua vida.
Opinião: Não sei que feitiço me tomou, mas espero que não se fique por aqui. Comecei a ler A Pediatra há dois dias, no Kobo. Todas as minhas leituras têm sido no Kobo. Gostava muito da premissa, mas receei que o facto de a obra ser em PT-BR pudesse desmotivar-me - porque poderia exigir um esforço extra a uma leitora já muito preguiçosa.
No entanto, a premissa tem outra complexidade para além da anunciada, a narrativa é rápida, vertiginosa. Percebemos que estamos perante uma mulher inteligente e altamente qualificada mas com problemas de relacionamento e um certo desiquilíbrio emocional - segundo Cecília, não precisar de ninguém é força, mas creio que se sente a sua carência e a sua solidão nas entrelinhas da sua voz.
Esta pediatra que «não gosta de crianças» é divorciada, vive para o trabalho e a pessoa que tem de mais próxima é a empregada, Deise, que também instrumentaliza a seu bel prazer. No emprego, Cecília é competente, mas não se entrega às crianças, não se enternece com o laço mãe-filho. Simplesmente observa tudo com cinismo, distanciamento, frieza profissional. Achei-a uma personagem muito complexa, irascível, de mau feitio e bastante amargurada com a vida.
O amante, a empregada, o pai que trabalha no mesmo edifício mas que, ainda assim, é sempre mantido à distância, o filho do amante, por quem esta pediatra que «não gosta de crianças» se encanta, sem que o leitor compreenda, sem que ela compreenda.
Acho que Andréa del Fuego criou aqui uma narrativa pujante sobre a atualidade: as lutas interiores e a exaustão de uma vida cheia de exigências em que as mulheres têm de ser exímias em tudo, em que têm de ansiar por ser mães, por uma família, por sucesso profissional e por estarem sempre lindas, perfumadas, frescas. Gostei muito da Cecília, uma mulher claramente à beira do abismo.
Sinopse: Com humor mordaz, o novo romance de Andréa del Fuego apresenta a história de uma personagem muito peculiar: Cecília, uma pediatra nada afeita a crianças.
Cecília é o oposto do que se imagina de uma pediatra – uma mulher sem espírito maternal, pouco apreço por crianças e zero paciência para os pais e mães que as acompanham. Porém a medicina era um caminho natural para ela, que seguiu os passos do pai. Apesar de sua frieza com os pacientes, ela tem um consultório bem-sucedido, mas aos poucos se vê perdendo lugar para um pediatra humanista, que trabalha com doulas, parteiras e acompanha até partos domiciliares. Mesmo a obstetra cesarista com quem Cecília sempre colaborou agora parece preferi-lo. Ela fará, então, um mergulho investigativo na vida das mulheres que seguem o caminho do parto natural e da medicina alternativa, práticas que despreza profundamente. Em paralelo, vive uma relação com um homem casado, de cujo filho ela acompanhou o nascimento como neonatologista. E é esse menino que irá despertar sentimentos nunca antes experimentados pela pediatra.
Opinião: Lido no kobo, não esperei gostar tanto deste «Leme».
Por um lado, até cerca de um terço do livro, senti que a questão da violência doméstica, por vezes subtil e até passiva, exigia uma estrutura mais densa, outro peso na narrativa que nunca mais vinha. O livro parece, em certa medida, escrito por uma mulher muito jovem, à qual falta uma certa profundidade. Parece uma voz mais juvenil, sobretudo porque antevemos o seu presente, sabemos que é adulta, mas talvez o livro só funcionasse com esse tom mais pueril.
No entanto, na segunda parte da leitura, que me agarrou pelo colarinho e que li de um fôlego, percebi que isto não é um retrato da vida da personagem, e que era essa tridimensionalidade da vida da personagem que estava em falta, e que eu continuava a procurar. Refiro-me a relatos do quotidiano em que o tal Paulo, o padrasto agressivo, não fosse a personagem principal. Foi então que me mentalizei de que o livro é sim um relato da vida com um padrasto abusivo, e vi-me obrigada a repescar o meu próprio lema, segundo o qual menos é mais. Portanto, a autora contornou a palha e levou-nos direitos ao padrasto tóxico.
Somos conduzidos pela sua infância, pelo casamento doloroso da mãe, pelas marcas que essa relação abusiva deixou nela enquanto criança e jovem. Apesar de, a tempos, o sentir um pouco superficial, houve momentos que me arrebataram por me identificar e/ou conhecer pessoas próximas que conviveram com este tipo de violência. Comoveu-me várias vezes, essa violência dos gestos bruscos, das portas a bater, dos estalidos de língua, dos objetos a voar e dos pontapés nas coisas. Toca ainda o tema da molestação de menores que, embora muito sucinto, é muito representativo dos casos reais.
Aquilo que lhe valeu as quatro estrelas foi, acima de tudo, o desprensiosismo ao contar a história, mas também os capítulos curtos que me iam catapultando de uma reflexão para a seguinte. A narrativa não tem exatamente um fio condutor - isto é, não está organizada cronologicamente, por exemplo -, mas isso também não faria sentido. Viajamos de evento marcante em evento marcante, em que por vezes o que dói é apenas a rotina numa casa que não é refúgio.
Houve dois ou três episódios que me atingiram realmente, (view spoiler), e acho que foi nesses momentos que senti a história como real, em que me recordei de que não estava simplesmente perante uma obra de ficção.
Não diria que é um portento da literatura, mas é uma boa estreia de uma autora portuguesa: uma voz sem floreados, episódios palpáveis, um enredo contemporâneo com o qual é fácil identificar-nos. Vale muito a pena pela abordagem que faz a esta questão de amarmos e odiarmos aqueles que nos são próximos, e a como isso nos rasga a alma.
Sinopse:Leme é o relato da vivência de uma rapariga que assiste, durante anos, à erosão dos pilares que sustentam as ligações humanas: vê a mãe subjugada à violência do homem com quem mantém uma relação amorosa disfuncional; vive na pele a distorção dos papéis desempenhados por pais e filhos; alimenta-se da solidão para ultrapassar um quotidiano de medo e fúria; disputa um lugar só para si no meio do caos familiar; aprende a reconhecer o consolo das pequenas vitórias; e, por fim, reconstrói-se a si e às suas memórias.
Nenhuma criança conhece de antemão os nomes das coisas, mas todas as crianças reconhecem instintivamente o perigo. Para a protagonista desta história, o perigo tem o nome de um homem, e é sinónimo de obsessão, desequilíbrio, solidão, desamparo, poucas certezas e muitas dúvidas. Leme é um golpe de escrita para regressar à vida. Uma cintilação plena de vida e um soco no escuro que nos engole: eis um livro que aponta diretamente aos limites do bem e do mal.
Sinopse: Em finais dos anos 70, no Caniço, uma cidade costeira na ilha da Madeira, todos conhecem Ana Clara, a estranha rapariga que não fala e que passa os dias à janela.
Quando Anita Fontoura a vê, também ela presa na sua janela de solidão imposta pelo marido, desenvolve-se entre as duas vizinhas uma amizade inesperada.
Décadas mais tarde, de regresso à ilha para enterrar Anita, a sua filha Oti reencontra-se com Ana Clara, sua madrinha, para tentar compreender a história da família, das mulheres Fontoura, da fuga das duas para Lisboa e daquela mãe que foi tão difícil amar.
Este é um romance sobre liberdade e coragem, sobre forjarmos nosso próprio caminho, sobre gritos no silêncio. Duas mulheres enclausuradas que o destino uniu e que, juntas, encontraram uma forma de voar.
Opinião: EmVertigens, a Valentina Silva Ferreira dá-nos a conhecer um leque de mulheres inesquecíveis. Ainda que as protagonistas sejam, indiscutivelmente, Ana Clara e Anita Fontoura, senti por várias vezes que o verdadeiro protagonista é o sagrado feminino - o ser mulher, as ligações entre as mulheres, a doçura, a força, a resiliência das mulheres e o seu estatuto, à época, de cidadão de segunda.
A minha maior surpresa foi para com a voz narrativa desta jovem autora madeirense. Nunca tinha lido nada da Valentina e, ao abrir o seu livro, senti-me perante um talento colossal. Uma voz poderosa mas que não se esforça, não se afeta. Uma voz acessível mas muito, muito lírica, que polvilha a historia de misticismo. Não conheço muitos livros assim de autores portugueses e, tendo de o aproximar de um estrangeiro, diria que há um quê de Gabriel Garcia Márquez no modo como as vidas das mulheres Fontoura são contadas. Embora sem cair no realismo mágico, há ali uma série de apontamentos memoráveis, de sentido de continuidade, que me remeteu para o universo das goiabas e dos trópicos.
MasVertigensé ainda mais do que isso. É um livro primorosamente escrito que nos traz a Madeira, os madeirenses, a clausura da ilha lado a lado com a sua beleza fatalista. É um livro excepcionalmente envolvente, que merece a distinção como semifinalista do Prémio Oceanos, e que promete um futuro pleno de luz à sua autora.
Opnião: "(...) É cada vez mais difícil lidar com um corpo que falha. Mais comprimidos, mais uma operação, um coração mecânico, uma válvula aqui, uma placa de titânio ali, a carne macerada, os ossos em franca erosão, tudo preso pela ciência da longevidade e por peças impressas em máquinas 3D, como se a morte não fosse parte da vida, mas, antes, uma sentença adiável, até se atingir o limite do conhecimento humano, que, como se sabe, é impossível, visto que este é como o universo e a estupidez..."
Depois de um longo jejum de leitura - só tenho lido o que estou a traduzir -, decidi apostar no último livro da Filipa Fonseca Silva, porque a sinopse promete uma viagem a lugares que nunca tinha explorado na literatura: a sexualidade geriátrica.
Ultrapassada uma certa resistência inicial, e auxiliada pelo tacto da autora, que nos conduz por esse mundo em que nunca me tinha permitido pensar com sensibilidade e um toque de humor, aventurei-me na viuvez da Helena.
A Helena é uma octogenária que, apenas depois da morte do marido, começou a saciar a sua curiosidade quanto ao mundo do sexo. Na exploração da sua sexualidade, tem o seu primeiro orgasmo aos 70 anos, e essa descoberta desperta-a para tudo aquilo que nunca fez e que não quer morrer sem fazer. E se eu morrer amanhã? torna-se o seu lema e, na sua jornada de descoberta, acaba por ter ainda algumas coisinhas a ensinar aos filhos e à neta. Gostei acima de tudo da relação da Helena com a neta, mas também da abordagem ao sexo como um ato de companheirismo, de confiança, de exploração e de partilha sem preconceitos. Gostava tanto que a Helena fosse minha avó <3
Acabei este livro abraçada a um presente inesperado: a minha vida não vai acabar aos 50, nem aos 60. Se calhar, nem aos 90. Aconselho vivamente este livro para refletirmos com leveza - mas pertinência - em assuntos que nunca nos ocorreram, e que agora vão lançar um novo prisma sobre a vida e as suas infinitas possibilidades.
Sinopse: Helena é uma viúva de setenta e nove anos aparentemente pacata. Vive com o gato num apartamento, independente dos filhos e netos adultos, gozando de ótima saúde física e mental. Até ao dia em que, por acidente, pega fogo à sala de estar.
Obrigada a mudar-se para casa da filha, que começa a questionar a sua sanidade, acaba por revelar um segredo que deixará toda a família boquiaberta: afinal, tem uma vida sexual ativa. Muito ativa.
A partir desta confidência, Helena conta-nos as suas aventuras amorosas e o lema de vida que adotou desde a morte do marido, com quem partilhou mais de quatro décadas de descontentamento.
E se eu morrer amanhã? é um romance hilariante, que nos leva a refletir sobre os preconceitos em relação às mulheres mais velhas e o enorme tabu em torno da sua sexualidade. É também uma luz de esperança, iluminando a ideia de que nunca é tarde para descobrir o que nos faz feliz.
Opinião:Foi a primeira vez que li um livro da autora Ana Teresa Pereira, uma das favoritas da DGLAB para atribuição de bolsas e prémios. A história é intrigante, bastante interessante - julgo que com laivos de Rebecca, ou daquilo que julgo que será essa obra de Daphne du Maurier.
Trata-se da história de uma pintora que de repente desperta numa casa no interior de Inglaterra, longe de Londres, do seu apartamento e das galerias que costumava frequentar. É-lhe atribuído outro nome e outro passado, e descobre que já não sabe dançar nem consegue pintar, como se fosse outra pessoa apesar de se recordar desse outro passado na capital. Está rodeada de estranhos e é informada de que sofreu um acidente relacionado com uma cascata local.
A linguagem é simples, a escrita fluida, o mistério vai-nos mantendo presos às páginas. Tem passagens realmente belas, tais como:
(...) e as gotas de orvalho de manhã cedo em todas as folhas e todos os ramos de um bosque onde ninguém passa, e o som da água é o som do universo, o som que também está no fundo de nós, misturado com o vazio e a escuridão.
De salientar um ponto de que não gostei e que me parece ser bastante recorrente num certo círculo de autores portugueses: o pedantismo de despejar referências artísticas, musicais e literárias umas atrás das outras, a cada página uma nova exibição da sua formação cultural. É desnecessário e diria até pouco credível escrever-se sobre pessoas comuns que vivem em águas-furtadas com grande simplicidade, mas estão sempre prontas a citar os "grandes".
(...) como as ruazinhas, as pontes, os canais, do filme de Luchino Visconti, como o mosteiro e o vale profundo do filme de Michael Powell e Emeric Pressburger). Uma rapariga casada que vinha a Londres uma vez por semana, ver um filme ou uma peça de teatro, e trocar um livro na biblioteca, livros de Dorothy Whipple, Richmal Crompton, D.E. Stevenson, Winifred Watson. E Francis Burnett.
Não me parece também que o retrato psicológico da personagem principal, esta Karen prestes a completar 25 anos, faça sentido perante estas referências. Uma jovem de 24 anos que vive sozinha em Londres, bebe vinho e ouve música antiga, pinta a óleo e visita galerias e faz caminhadas na natureza e vai ao teatro. Acho que é uma idealização de pessoas de outro tempo, sem raízes na realidade atual.
Sinopse: Le Notti Bianche passava‑se numa ponte: Maria Schell esperava o amante que partira há um ano, Marcello Mastroianni apaixonava‑se por ela, e havia música, não sei de onde vinha a música, talvez de um bar ou de uma esplanada próxima; lembro‑me de um barco no canal, e dos sinos a tocarem, e do momento em que começava a nevar, e da rapariga a deixar cair o casaco que tinha sobre os ombros e a correr para os braços de um dos homens. Black Narcissus: Deborah Kerr vestida de freira, e o inesperado dos seus cabelos ruivos quando recordava, porque aquele lugar fazia recordar coisas; Kathleen Byron a tocar o sino do mosteiro na beira do precipício e a pintar os lábios na sua cela, a voltar de madrugada com um vestido vermelho e o cabelo molhado; e depois a luta final entre a jovem com o hábito branco e a jovem com o vestido vermelho, as nuvens lá em baixo, o mosteiro erguia‑se acima das nuvens. Em tempos pensava que todas as histórias eram uma só, a luta entre o anjo bom e o anjo caído, e sempre à beira de um abismo.